Thursday, May 15, 2008

Jesus da Rocinha

ABOUT THIS ARTICLE: I wrote about 200 articles in my weekly Portuguese-language online column, so it's hard to pick the one I like best or which would fit here best. This one was a work of fiction, a metaphorical commentary on Brazilian society and religion, and well, I just felt like putting it here. I enjoyed writing for that Web site because I could basically say whatever I wanted to. So... if you can understand Portuguese, or just want to follow the letters in this beautiful, melodious language, read on!

DIRETO DA REDAÇÃO (www.diretodaredação.com)
22/12/2001
Messias do século XX
Colunista faz uma descoberta impressionante: ela fala de um homem chamado Jesus, que viveu no Rio de Janeiro no século passado.

Maria da Rocinha descobriu que estava grávida em março de 1966. O marido dela era José, um carpenteiro bêbado que não ganhava o bastante para sustentar os dois, quanto mais um terceiro membro na família. Ela disse que o filho era dele, pois ele nunca iria acreditar que um anjo tinha “plantado a semente.” Apesar de ter ficado chateado, José passou a bater menos na mulher e a beber menos também, como que por interferência divina.

Por nove meses Maria continuou a dura rotina de faxineira, em qualquer casa que conseguia em São Conrado. Mas todo dia ela descia o morro cantando de felicidade, por possuir no ventre um feto tão especial – um feto que se transformaria num menino e finalmente num homem que salvaria o mundo de alguma maneira. Será que ele teria que morrer também? Ela esperava que a história não se repetisse. De qualquer modo, o filho dela seria alguém, ao contrário do
marido. Ela também se sentia importante, apesar de não ser tão pura quanto a Maria original.

Na noite do dia 24 de dezembro de 1966, Maria estava trabalhando em uma das casas, quando sentiu dores fortíssimas. A patroa levou-a de carro a vários hospitais na cidade, mas nenhum parecia ter vaga. Quando as esperanças já estavam se acabando e a placenta estourando, Maria e a patroa acharam um hospital particular que decidiu ajudá-las. Porém, como o preço de um quarto era caro demais até para a patroa pagar, Maria teve que dar a luz no chão mesmo,
sobre um cobertor. Pacientes e visitantes a rodearam, fascinados pelo fenômeno que nascia... era um menino negro como a noite sem lua, enquanto Maria era branca como a neve.

Quando Maria chegou no barraco em que morava, dois dias depois, ela e o marido (também branco) tiveram uma grave discussão. Era óbvio que o filho não podia ser dele. Ela então alegou:

-Essa criança aqui é Jesus! Um anjo trouxe ele pra mim...

-Que Jesus que nada! – Ele respondeu, gritando. – Você andou foi dando prum negão! Agora vai ter que apanhar!

Nada que Maria disse conseguiu convencer José. Ele bateu nela como nunca, mas não fez nada para o bebê. Pelo contrário: sem saber o porquê, José começou a chorar quando segurou o pequeno Jesus, e pôs ele para dormir no colchão do casal. Depois disso, José saiu pela porta do barraco e nunca mais voltou. Alguns dizem que ele morreu algum tempo depois na sarjeta.

Jesus da Rocinha, aos 33 anos, era bem diferente de Jesus de Nazaré. Jesus da Rocinha era negro e usava rastafari, enquanto Jesus de Nazaré (pelo menos nas pinturas) era branco e tinha lindos e longos cabelos loiros. Jesus da Rocinha, ao invés de defender a prostituta Maria Madalena de ser apedrejada, defendeu um traficante de drogas por quem era apaixonado.

Jesus da Rocinha era homosexual e ateu, mas mesmo assim era filho de Deus. Assim como Jesus de Nazaré, ele passou a vida lutando por ideais de harmonia e irmandade, e também fazendo milagres. A mãe usou todas as economias para que ele aprendesse a ler, escrever, tocar piano e ter noções básicas de medicina. Jesus da Rocinha usou esses conhecimentos para dar aulas e salvar vidas. Ele tornou-se a pessoa mais querida da comunidade.

No ano-novo de 1999 para 2000, Jesus da Rocinha estava na praia de Copacabana com a mãe e doze amigos. Quando deu meia-noite e todos estavam comemorando a virada do milênio, à luz dos fogos de artifício, Jesus da Rocinha sentiu uma dor partir seu coração: havia sido atingido por uma bala perdida. Ele morreu com a alegria do reveillon estampada no rosto.

Maria da Rocinha não aguentou a dor e atirou-se ao mar, sendo levada pelas ondas, que estavam ferozes naquela noite.

No dia seguinte, durante o funeral que os moradores organizaram para Jesus da Rocinha, uma comadre de Maria comentou:

-Maria dizia que o filho era Jesus de verdade, trazido por um anjo.

-Não foi bem um anjo, não... – Uma outra desmentiu em voz baixa. – Você não sabia? Maria foi estuprada...